Elizabeth Holmes é a heroína de The Inventor: Out for Blood in the Silicon Valley (2019), documentário da HBO dirigido por Alex Gibney. Diretor e produtor conhecido por tratar de histórias com o foco na desonestidade, o novo filme do diretor prevê uma abordagem interessante, quase simbiótica entre o cinema e a história de Holmes – uma empresária-cientista estadunidense da área de biotecnologia.
Ao sugerir algumas relações entre a fundadora do laboratório Theranos em seu impulso criativo paranoico e as invenções de Thomas Edson, reconhecido por suas inúmeras patentes, dentre elas, o cinematógrafo; ambas as afirmações podem ser contestadas a partir do ponto de vista historiográfico que decidimos abordar e em diferentes graus. Assim, revelamos a tratativa de um documentário clássico que não sugere essa exposição em sua primeira leitura, mas deixa claro o quanto o aparato cinematográfico, em suas discussões sobre a realidade e a fantasia, consegue ecoar em meio as tratativas humanas.
Holmes é cheia de citações e declarações vagas sobre a sua preocupação em criar algo que possa ajudar a humanidade: evitar que as pessoas tenham que se despedir das outras antes do tempo, é uma delas. Difícil. Todavia, essas declarações só foram suficientemente descreditadas quando em conjunto com uma série de especialistas que, ao firmarem com propriedade uma revisão da suposta insensatez da jovem, conseguem, depois de mais de 10 bilhões de dólares perdidos ao longo de 10 anos, auferir as mentiras em suas declaradas verdades.
Edson é o nome de sua invenção, uma máquina que prometeria ampliar o acesso das pessoas aos exames de sangue de forma mais rápida e barata, sem a necessidade dos pedidos médicos – o que enlouquece um segmento significativo da saúde, ao mesmo tempo econômico e quase nada humano. Recorrermos então, aos estudos literários de Jonathan Gottschal, que escreve sobre a grande capacidade humana de fabular: apontamos aqui uma primeira hipótese sobre os grandiosos pensamentos da jovem estudante que, decide abandonar a Universidade de Stanford para colocar em prática algo que seus próprios professores denominavam como fisicamente impossível.
Ao estabelecer um tipo de jornada da heroína – paralelo que conseguimos auferir com a estrutura mítica da narração de Joseph Campbell, desenvolvida por sua aluna Maureen Murdock – essa alternativa preocupa-se, ou deveria, no caso de Holmes, em contemplar questões ligadas à psique feminina. Alguns dirão: como poderíamos encontrar tal estrutura em um filme documentário, ou seja, um filme que teria como princípio falar sobre a realidade do mundo? Definimos aqui o filme é uma construção de olhares além do gênero, não é a realidade per se (mas o que é, afinal?), já que se configura como um recorte daquilo que se quer ou não mostrar. Uma mulher tomando as rédeas da ciência em um mundo iminentemente machista e misógino é o que, acreditamos, autoras como Murdock gostariam de ver, porém, a tal jornada da Holmes não apenas se transfigura em uma jornada de vilã, mas desilude qualquer história que se propunha a algum tipo de transformação benéfica e que esteja aquém do gênero.
Coincidentemente, a vida de Elizabeth Holmes, explanada em quase duas horas de filme, também não deixa de configurar uma bizarra fabulação concebida por ela mesma e do qual ela não pretende abdicar. O seu mundo comum explorava a infância em finais de semana na praia com o tio, quando um câncer inesperado que se espalha por todo o corpo do familiar, o leva rapidamente a morte. Esse acontecimento funciona como um exímio chamado a aventura. Com apenas 19 anos, Elizabeth está decidida a fazer algo pelo mundo: ao viver uma perda traumática, o seu sonho é que as pessoas possam ter acesso facilitado as informações sobre a sua saúde por meio de uma gota de sangue.
Como um tipo megalomaníaca bem-intencionada, Holmes é analisada por diversos profissionais, dentre eles um especialista em comportamento chamado Dan Ariely, que descreve muito bem a forma inautêntica de como os meios justificam os fins. Ao fazer algo que a sociedade julgue como errado – roubar, por exemplo, se feito por um bem maior, como ajudar uma entidade carente, faz com que a consciência do bom trapaceiro se exima de tal culpa. Com essa lógica, Ariely aponta uma maneira de explicar a encenação da fundadora da Theranos. Entretanto, não só de boas intenções vive o mundo, ainda mais o mundo corporativo do qual a região do Vale do Silício na Califórnia é o modelo, muitas vezes, de um empreendedorismo desviado e movido por interesses inteiramente financeiros.
O mais curioso, talvez sejam as declarações daqueles que trabalharam diretamente com a intitulada jovem cientista – que fora capaz de forjar o funcionamento de uma máquina por praticamente 10 anos – mais tempo que o próprio Thomas Edson levou para fazer a lâmpada funcionar de forma efetiva. A procura por pistas que identificariam a frieza e a afronésia de uma jovem branca encontram-se, por exemplo, na cômica forma como Holmes não pisca – quase uma robô, tal informação estabelece um jogo do qual procuramos o erro – e para decepcionar os mais fissurados, eu digo que ela pisca sim.
Outra justificativa mais plausível é o fato de suas declarações serem cada vez mais evasivas – cheias de sonhos e sentimentalismo, mas desabitada de informações científicas que confirmariam seus planos – uma não novidade se pensarmos, por exemplo, com olhos e cabeça de uma pessoa que vive o hoje turbulento, recheado de inverdades escabrosas das quais não nos envergonhamos de repetir. O mais cômico, para não ser trágico, é a forma como inúmeros investidores experientes foram ludibriados por alguém que pensou resolver os problemas da humanidade com apenas uma gota de sangue – uma pena para a economia, a preocupação mais em vista, afinal, quem são as pessoas que tiveram o seu sangue violado? -; mas uma excelente premissa para uma história de ficção científica em que a ciência corrompe.
De fato, a oratória ainda consegue vencer muitos jogos. Porém, não dedicamos apenas ao poder da palavra a irresponsabilidade humana – o que diriam exatamente os investidores se Elizabeth não fosse uma mulher branca, estadunidense e de classe média? Talvez seja muito cruel pensar nessa possibilidade, mas o julgamento humano precipitado, carregado de interesses pessoais e formulado por essa série de lógicas enraizadas, muito difíceis de burlar, chegaram ao mesmo resultado catastrófico – a queda iminente de nossa heroína, que deixa seu posto, mas não abandona a verdade que conta para si mesma.
Dos entrevistados, a que me parece mais espontânea está longe dos profissionais contatados como especialistas de suas áreas – engenharia, química e física, por exemplo, – ou daqueles que, por meio de uma reconstituição, pretendem explicar o inacreditável. Cheryl Gagfner trabalhou como recepcionista da empresa Theranos, sua declaração é um dos poucos momentos capazes de arrancar risos – ainda nervosos – de uma trama cheia de furos de roteiro. Cheryl comenta que, ao se dar conta do que estava acontecendo, um de seus primeiros pensamentos foi, justamente, rever aquilo que colocaria em seu currículo futuramente. Ao som de uma risada quase gargalhada, a recepcionista conclui com graça e perplexidade o que fora uma série de erros, explicações não concedidas e negligência quanto às informações que deveriam ter sido exigidas de antemão.Ao explorar uma responsabilidade que pode ser compartilhada com uma série de indivíduos – mesmo aqueles que não sabiam da dita “verdade” – a história de ascensão e queda de Elizabeth Holmes pretende dizer muito sobre uma sociedade cheia de boas intenções e nenhum limite sobre o que pode ser feito e, principalmente, como é feito. The Inventor: Out for Blood in the Silicon Valley não se configura, somente, como um relato de seu tempo – um tempo em que a desregulação ganha cada vez mais espaço, tornando-se sinônimo de uma liberdade duvidosa. O documentário, no qual começamos confiantes, esperançosos e terminamos boquiabertos, é mais um enredo capaz de atravessar os tempos por meio do humano, é sobre as verdades que somos capazes de criar e o nosso poder de torná-las praticáveis, mas também sobre a nossa capacidade de fabular.