Socorro, Virei uma garota | Crítica do Filme

Crítica

Socorro, Virei uma garota é uma comédia da corporeidade, ligeiramente ancorada no terreno da ficção científica, que prolifera as temáticas de mundos paralelos dentro dos clássico “e se…”, o filme pretende discutir de forma descontraída algumas problemáticas de gênero, relacionamentos e, claro, a importância das frustrações na vida de um adolescente. Ao fundamentar-se sobre tipos já bem conhecidos do cinema coming-of-age, a história inicia-se com Júlio (Victor Lamoglia), um jovem estudioso que não encontra espaço para ser popular em um mundo onde as aparências dominam. 

O desejo de ser a pessoa mais popular do colégio é concedido por meio de uma estrela cadente, porém, até mesmo a astronomia parece acreditar que apenas sendo uma garota esnobe e completamente egoísta, é possível tornar-se alguém relativamente importante. E é através de Júlia (Thati Lopes) que Júlio descobre o que existe além de um corpo bonito, compras irracionais e amizades vazias.

Em seu mundo paralelo Júlio/Júlia descobre o quanto ainda os dois universos são profundamente machistas – os garotos são divididos em dois: nerd’s desengonçados e ratos de academia cabeças-de-vento, já as garotas vivem sob a ditadura da beleza – salvo, um pouco, a personagem de Renata (Lua Blanco), a irmã mais velha de Cabeça (Leo Bahia) – o melhor amigo de Júlio. Renata já passou da fase adolescente, no mundo de Júlia ela é uma mulher que adora motos, lésbica assumida, experiente e que se dispõe a ajudar Júlio/Júlia na conquista de sua grande paixão adolescente: Melina (Manu Gavassi) – uma garota sensível que não aguenta mais viver sobre a sombra da melhor amiga.

O relacionamento entre as amigas parece um pouco desestabilizado, justamente por Júlia fazer o tipo odiosa e que rouba as paixonites de Melina. Todavia, a admiração de Júlio/Júlia pela garota constituí-se como uma das tramas chaves: como conquistar a amiga sendo uma garota? Nesse aspecto, algumas passagens das quais Júlio/Júlia se aproveitam das clássicas e preconceituosas “coisas de garota” parecem até engraçadas, mas acabam caindo, de alguma maneira, em uma mesmice machista que observa rachaduras constantes entre o que estabelecemos como dois universos completamente diferentes e intransponíveis. 

Além do colégio, outro núcleo importante para a trama acontece em meio às relações familiares – se no mundo de Júlio sua mãe morrera há pouco mais de 10 anos, na história de Júlia sua mãe ainda vive, porém, elas não parecem manter um relacionamento muito saudável. O avesso é confirmado também pela presença do pai (Nelson Freitas) – um solteirão, garanhão hétero e enfadonho versus um homem doente que pouco sai de casa e que trata a filha como uma “princesa” – colocando-a acima de tudo pelo simples fato de ser uma menina, inclusive do irmão (Kayky Brito) que nessa versão, é o clássico desajeitado inteligente. As dualidades extremamente marcadas, acabam confirmando duplicidades das quais a sociedade parece imperar: ou eu sou uma coisa ou sou outra, ninguém pode ser flexível.

No entanto, essa mesma matemática irreversível aponta para perspectivas que podem ser destacadas no famoso “ir além”, afinal, ao acentuar aquilo que estamos cansados de ver e repetir (sem meia mea culpa), Socorro! Virei uma garota também pode trazer à tona uma discussão sobre as superficialidades excessivas: repetir o estereótipo é afirmá-lo ou criticá-lo? Nesse terreno, como se vivêssemos uma terceira história paralela a de Júlio/Júlia, nosso papel é reconhecer que, mesmo fora da diegese do filme, também possuímos um papel: reconhecer tais complexidades.

À primeira vista, a comédia que parece tornar qualquer coisa sinônimo de risadas, não enfrenta o que de fato apresenta: o sexismo, a discriminação de gênero, as relações baseadas em mentiras e superficialidades, as perdas e, finalmente, as inúmeras decepções que são necessárias, não somente para a criação de personagens complexas e profundas, mas para a expressão daquilo pelo qual nos entendemos enquanto sociedade. 

O corpo não só é destaque pela troca, mas pelo descobrimento que passamos ao prová-lo como aquilo que nos faz ser e estar concretamente no mundo: a comicidade de Júlio/Júlia é atravessada por uma onda de aceitação em estar em um “corpo de mulher” e não se reconhecer ali. O amadurecimento que vem aos poucos e que chega por meio da curiosidade sexual também se ampara nas amizades e nas relações familiares: Cabeça é o típico garoto – leia-se personagem – que jamais teria uma amizade com Júlia, porém, a relação que titubeia entre a consideração por Júlio e a felicidade em poder chegar tão próximo da garota mais linda da escola, descreve situações extremamente espirituosas e que passeiam pelo toque, pelo beijo: é tudo físico e à flor da pele.

Do pandemônio juvenil chegamos de fato ao sentimento, afinal, nem só de alvoroços se sustenta o roteiro da comédia. Das cenas mais sensíveis, talvez a do reencontro entre Júlio/Júlia e sua mãe (Vanessa Gerbelli), seja a mais surpreendente. Se na vida de Júlio sua mãe já não existe, na de Júlia a presença da mãe não é interrompida pela morte, mas pela própria relação entre mãe e filha. Em um tipo de nostalgia que permite a Júlio viver momentos com a mãe, o clipe que revela o tempo de um dia, sugere o quanto esse tempo pode ser dolorido e ao mesmo tempo assombroso: aqui, as problemáticas da juventude começam a tomar as proporções da vida adulta, é preciso escolher entre a mãe e a vida “real” – o novo Júlio abre mão de seu maior desejo e decide voltar para a sua boa a velha família, cheia sim de defeitos, mas ainda assim, uma família. 

Socorro! Virei uma garota está preparado para rir de si mesmo – um receita quase certa de nosso cinema e que, por vezes, aparenta a bobice, mas muito pode dizer de nossa formação social e cinematográfica. A surpresa está naquilo que a obra consegue comunicar: a perfeição é utópica e o mais divertido está em sermos exatamente aquilo que nascemos para ser – gente, tosco, errados e no mais, felizes.

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