O documentário Adoniran, Meu nome é João Rubinato (2018) recupera as inúmeras faces do sambista paulista Adoniran Barbosa. Em um misto de nostalgia, sofrimento e muita poesia, o filme carrega no uso de imagens de arquivo que nunca haviam sido vistas, assim como nos diálogos que retratam um profundo e imbricado processo de criação do músico.
Ao embarcar em um universo que traz para o primeiro plano tudo o que existe de mais simples e corriqueiro – simples quando pensamos, por exemplo, que o artista vive de inspirações lunáticas e pouco palpáveis para os reles mortais – Adoniran, Meu nome é João Rubinato desmascara um homem que viveu integralmente da sua obra.
Em um charme bucólico que mistura cigarros, bebidas e melancolia, as imagens trabalhadas pelo diretor Pedro Serrano, evocam não apenas o passado de um tempo que não voltará nunca mais, mas um passado que se faz presente em resquícios de uma São Paulo charmosamente ignóbil.
Se da tragédia humana surgem as palavras mais doídas, as histórias vivenciadas por esse personagem de chapéu e gravata borboleta revelam um humor permanente diante de uma vida áspera, mas regada a um ritmo frenético de personagens que se confundem entre criador e criação.
Se no cinema a construção das personagens depende de uma série de atributos, conflitos humanos e algo do coerente para chamar a atenção dos espectadores, assistir aos 122 minutos de tela do maior sambista paulista de todos os tempos, é também jogar com uma série de histórias que se contradizem.
De historiadores a parentes de Adoniran, confirmam-se as incertezas sobre cada história contada. E é aí, claro, que reside toda a especiosidade de uma vida em grande parte vivida no bairro do Brás, localizado no centro de São Paulo e em meio a todas as artimanhas e contradições do biografado.
Se o registro apresentado por Serrano se preocupa, principalmente, com uma homenagem digna ao artista, fica evidente o objetivo do enaltecimento romantizado e que constantemente se contrapõe ao Adoniran Barbosa que poucos conheceram. O romantismo – longe do que realmente fora a obra do sambista – é pontuado pela relação exposta entre Adorinan e sua companheira de pouco mais de quatro décadas, Matilde de Luttis. Em um depoimento emocionante sobre a relação entre o casal e, consequentemente a dependência entre eles, a confissão da Matilde se dá em meio a uma tristeza inconsolável da perda, expondo uma figura feminina que quase se anula pelo amor.
Com uma montagem que pretende decantar as canções mais famosas de uma carreira tão abrangente, a costura entre palavra e imagem em movimento a partir de Saudosa Maloca (1951), Samba do Arnesto (1953) e Tiro ao Álvaro (1960), para citar algumas, despertam-se em um cinema totalmente cinestésico.
As canções não só delimitam o ritmo da montagem, mas compassam os sentimentos e o corpo de um espectador passível de entregar-se a uma São Paulo – nosso principal cenário – que conhecemos tão pouco profundamente.
Se o conjunto da obra se mostra extremamente respeitoso, as relações construídas com a metrópole demonstram o quanto ainda repetimos os mesmos erros: uma São Paulo cruel, que divide, estratifica, olha torto para o outro e obriga, de alguma forma, o afogamento na bebida e no cigarro.
Ao pontuar a narrativa com a voz do próprio artista, a sensibilidade em relação ao som torna-se muito mais corpulenta: uma voz que arranha, uma garganta com pigarro, regada ao álcool e que se reverte em pensamentos provocadores, dos quais achamos graça hoje, mas, se pensar, quem de nós não ri das desgraças alheias mesmo?
Adorinan é confirmado como um nome imprescindível da cultura, inventor de palavras e tradutor das situações da vida em formato de som. Os desabrigados do mundo, de alguma maneira, levam um pouco da sua poesia, mas com uma diferença fundamental – em Adoniran hoje, enxergamos a poesia enquanto nos transeuntes de hoje, já não enxergamos ninguém.