Fora de Série é um filme que fala sobre o amadurecimento, suas delícias e, claro, as necessárias frustrações. Indiretamente também funciona como uma crítica divertida e irreverente a forma como a entrada na universidade, ou a sua tentativa, pode ser altamente angustiante. Em um mundo ideal, esse lugar chamado universidade promoveria o papel de libertação das pessoas e a expansão de seus pensamentos que, deveriam se voltar para o bem estar da própria sociedade em todos os sentidos. Porém, dentro da lógica de “formar para o mercado de trabalho competitivo e traiçoeiro”, esse ambiente preconiza muito mais a selvageria humana em passar por cima de outros que qualquer outra coisa.
É nesse cenário que surge o filme dirigido por Olivia Wilde, que demonstra um juízo cômico em sua forma de retratar um período importante de transformação – mas não é com esse mesmo cenário que a história se concretiza. Fora de Série conta a história de Moly (Beanie Feldstein) e Amy (Kaitlyn Dever), duas amigas que se dedicaram arduamente aos estudos nos anos do ensino médio e perceberam que, os colegas mais desprezíveis – a garota com fama de sair com todos os meninos, Triple A (Molly Gordon) ou o garoto aparentemente desmiolado, Tanner (Nico Hiraga), por exemplo, estão a caminho das universidades mais disputadas do país: é quando Moly se dá conta de tudo aquilo que deixou de fazer em detrimento da futura vida universitária e profissional.
Amy é convencida por Moly – que sonha em tornar-se membro do quadro político dos EUA, a desafiar seus pais e parte com a amiga para viverem uma noite de diversão, com a ideia de compensarem tudo aquilo que não foi vivido nos últimos anos. O grande objetivo é a festa encabeçada por um dos caras mais populares do colégio, Nick (Mason Gooding), do qual Moly reconhece ter uma inclinação física, mas racionalmente entende como um tipo de relacionamento impossível de acontecer, já que ambos são de mundos aparentemente muito distintos.
De fato, a noite é nada menos que cinematográfica: uma festa em um barco particular, aparições nonsense de Gigi (Billie Loure), uma garota está em todos os locais sem explicação alguma; romances como o de Amy que até então, admira Ryan (Victoria Ruesga) uma menina skatista, de longe, mas que ela não sabe se também gosta de meninas; uma carona com um criminoso entregador de pizza que é totalmente consciente do perigo de entrar em carros de estranhos e até profere um discurso para isso, além das problemáticas com drogas que resultam em hilárias cenas de delírios e, em especial, uma de animação com bonecas que denotam a sensação causada pela experiência de alucinógenos – tudo embalado por uma montagem excitada é um trilha vibrante, assim como a mais nova descoberta da dupla.
Nesse sentido, a grande habilidade do roteiro está em conseguir reunir uma série de acontecimentos tresloucados em apenas uma noite, diálogos rápidos e penetrantes que ultrapassam a sua função primeira, ou seja, apenas informar as vontades daqueles que falam. Ao explorar um imaginário das escolas estadunidenses, a história inova na construção de suas personagens que, não se contentam com a representação de suas figuras marginalizadas – Moly como a feminista convicta e com um perfil físico fora das “regras” que embelezam garotas altas e magras e Amy, uma lésbica assumida que vai para África ajudar na produção de absorventes para a população feminina.
Ainda que a história esteja sob o ponto de vista das duas amigas, as outras personagens também conseguem atender a um tipo de espírito irreverente e que se preocupa em mostrar como as pessoas são diferentes, mas, ao mesmo tempo, compartilham suas angústias, sonhos e dúvidas: a garota que faz sucesso na escola não é exatamente o exemplo perfeito de egocentrismo, já o cara inteligente que troca a universidade por um curso na Google é uma pessoa sensível a ponto de se apaixonar pela própria professora, Mrs. Fine (Jessica Williams), que também está bastante longe do estereótipo de chata e exigente. Fine é jovem e incentivadora de um comportamento rebelde que deve ser vivido por suas alunas aplicadas.
As figuras que assumiriam o papel da autoridade – a professora e os pais de Amy, por exemplo, interpretados por Lisa Kudrow e Will Forte – também são liberados de suas responsabilidades. Todavia, isso não significa que as prerrogativas da vida adulta deixam de existir, mas elas também estão flexionadas e não apenas depositadas nos ombros de alguém que é cobrado de sempre saber o que está fazendo. Os pais, meio abobalhados, preparam um jantar de formatura no qual nomeiam alimentos com um ímpeto bastante infantil, mas ainda assim, carinhoso. Já a professora, uma mulher descolada e independente, dona de um rastafari e de um carro abarrotado de coisas – muito diferente da figura supostamente organizada que esperaríamos de uma educadora clássica, é uma das caronas solidárias que a dupla consegue ao longo da noite. Fine empresta suas próprias roupas para que elas possam se vestir de forma mais audaciosa – um vestido verde e outro azul, ambos brilhantes são capazes de destacar as duas no meio da caótica festa. Entretanto, ao vestirem uma roupa de adulto, as complicações desse mundo também passam a presentificar-se: são as desilusões amorosas, as separações necessárias e, claro, o fato hilário, porém trágico de Amy ser presa ao responsabilizar-se heroicamente pela festa que, de algum modo, se configura como “ilegal”.
Esse é o trunfo da história. Ressignificar aparências e valores de uma sociedade que funciona pelo o que as pessoas têm e não por aquilo que elas são. As cenas são estruturaras quase como esquetes, figuram-se pela comicidade em tratar de assuntos que ainda inflamam as discussões em sociedade, principalmente aqueles que se referem ao corpo e a sexualidade. Em contraponto, as individualidades complexas se tornam cada vez mais reconhecidas e menos motivo de perseguição.
Uma das conversas mais marcantes do filme não pretende discutir nada de filosófico, claro, se pensarmos a partir do velho embate corpo e mente: a cena acontece quando Moly descobre que Amy satisfaz seus desejos sexuais com um bichinho de pelúcia. O diálogo é corriqueiro – corriqueiro sim, por que o sexo faz parte da vida, mesmo as pessoas falando dele ou não – e a cumplicidade que se estabelece é, justamente, aceitar que o que a amiga faz lhe faz bem e por isso não deve haver julgamentos. O julgamento, na verdade, é substituído por uma série de gargalhadas, perguntas inquietantes e brincadeiras que refletem a intimidade das duas.
Na mesma lógica de descoberta do corpo, Amy sofre sua primeira decepção – sua paixão é vista aos beijos com Nick – ao esconder-se no banheiro para chorar, ela encontra Hope (Diana Silveira), garota capaz de provocar conversas espinhosas e irritantes. Porém, essa irritação converte-se em desejo e as duas começam a se beijar. Ansiosa com a situação, Amy vomita em Nick, o ápice do desconforto e um motivo escatológico que, na verdade, reforça essa relação, afinal, as borboletas do estômago, dessa vez, decidiram sair pela boca.
Mesmo apresentando a problemática formação das famosas “panelinhas” na escola, o filme de Wilde parece extinguir a clássica noção entre vítimas e agressores – uma narrativa quase educativa que poderia, de fato, expandir-se para o resto do mundo. Molly e Amy estão longe de assimilar as normas que são impostas ou de ignorar as regras e assumirem suas personalidades como freaks: Molly e Amy são Molly e Amy. O rancor – sentimento que poderia ser facilmente trabalhado na trama – é deixado de lado, adotando então, a sororidade como principal meio e não apenas um fim para um final feliz.
Na inesperada conversa entre Moly e Triple A, Moly conta para a garota com o intuito de tranquiliza-lá, que sua amiga Amy nunca a chamou de nenhum nome ofensivo, como as outras garotas faziam – inclusive ela. Em contrapartida, Triple A responde que sua fama não lhe precede e confessa que o seu maior medo era o que as garotas poderiam pensar de sua vida ao saberem que ela dava carona para garotos na estrada? Será que elas entenderiam que as meninas também poderiam ter desejos e satisfazê-los sem culpa? Ou que não precisam de corpos perfeitos, segundo as regras invisíveis, mas dolorosas, que a sociedade impõe como a única alternativa para ser feliz?
Quase como uma crônica de sua época, Fora de Série parece querer finalizar com um discurso que resumiria todos esses assuntos, mas não o faz. Moly se recusa a ir para a formatura sem a amiga que se encontra presa. Seu discurso milimetricamente preparado começa a ser lido por Jared (Skyler Gisondo), um milionário que reclama com Moly que, ninguém se dá ao trabalho de conhecer as pessoas de verdade, afinal, as correntes pesadas de ouro que Jared carrega no pescoço são apenas acessórios de uma personalidade muito mais complexa do que aparenta.
O caminho até a formatura é concretizado pelo carro a toda a velocidade – uma referência a ideia de liberdade que o automóvel suscitaria, um sentido totalmente discutível em nosso tempo, mas que funciona no filme. O discurso que começa atrasado é finalizado sem grandes considerações, um outro ponto alto da narrativa: é preciso burlar a ideia de que precisamos de palavras profundas e bem combinadas para transmitir a emoção daquilo que vivemos. Em poucas palavras Moly relembra que o mais importante de tudo foi o fato de ela passar a olhar para cada um como uma pessoa inteiramente diferente, eximindo seus preconceitos adquiridos ao longo de anos em que não se permitiu conhecer essas mesmas pessoas.
Fora de Série é uma comédia capaz de se projetar como um filme que fala de sua geração, afinal, com uma produção repleta de mulheres – não apenas na história, mas na própria produção, ele prevê uma nova sensibilidade para essas narrativas. É empolgante ver um final de filme adolescente em que o baile ou a conquista amorosa não se configuram como a última grande etapa da jornada de nossas heroínas. É significativo pensar que, no lugar desses bailes, assistimos a uma garota que terminou a escola e pretende ficar, pelo menos, um ano longe de tudo isso, aprender com o mundo e ajudar as mulheres, como é o caso de Amy: o resultado dessa narrativa configura-se em um movimento que não insere as pessoas por que elas são vistas como diferentes, mas simplesmente as aceitam por serem quem são.