Adaptação da novela de Henry James, um dos autores mais influentes do século XIX, Os Papéis de Aspern é uma trama que apresenta um mistério caricaturesco, mas que admira pela imensa amplificação das personagens femininas. Ao contar a história de um ambicioso e refutável editor norte-americano, Morton Vint (Jonathan Rhys Meyers) que se mostra obcecado pelo poeta romântico Jeffrey Aspern (Jon Kortajarena), a história edifica-se sobre um vai e vem do passado e presente. Com um disfarce, o editor pretende conseguir as cartas que Aspern escrevera para Juliana (Vanessa Redgrave) – sua amante anos antes – com a ajuda da sobrinha de Juliana, Srta. Tina (Joely Richardson), porém, as condições postas por ela não são, para Vint, nem um pouco agradáveis.
No cenário de uma Veneza que pretende acentuar a atmosfera de mistério e romantismo individualista, Os Papéis de Aspern apresenta personagens que exalam o egoísmo: Vint ensaia cada movimento com o intuito de desvendar o que fora escrito nas cartas; Juliana é uma senhora rabugenta e apegada ao patrimônio, sua prepotência juvenil é potencializada na forma como ela constrói seu discurso, balbuciando reclamações com lábios já frouxos, sua esperteza parece não caber mais num corpo debilitado; à Srta. Tina é reservada palavras comedidas e medrosas, sua feição adulta, já madura demais em sua aparência, não esconde o fato de ela não ter vivido aquilo que lhe era de direito quando jovem.
O filme especula entre as memórias de Juliana, apesar das cenas cumprirem a função muito mais de flashbacks que de fato uma rememoração. Vint é um duplo, a própria sequência dos sonhos com a temática ‘Doppelganger’ – que convence mais pela plasticidade que pela narrativa – quer apontar para um sósia que atormenta. No entanto, o desempenho frívolo de Meyers torna sua personagem nada simpática – ao público é mais interessante a dúvida das lembranças de uma senhora que o ímpeto detetivesco de um escritor exuberante e que parece estar sempre em uma cena ápice de ação.
Ao mesmo tempo, a capacidade de gerar suspense na obra de James, consegue, em sua adaptação resgatar tal excitação, principalmente no que se refere às personagens femininas, que ocupam grande parte dessa narrativa. Juliana receia que suas intimidades da juventude sejam reveladas por um editor patife, sua dureza explica uma preocupação concreta com o que existe de mais seu: o seu direito de memória. Esse mesmo rigor é o grande opressor da vida de sua sobrinha, que vive enclausurada em um palácio decadente, porém, a transformação de Tina é, muito provavelmente, o que o filme traz de mais aliciante.
Sua vida lavrada pelos cuidados com a tia, não foi o suficiente para tapar as brechas de uma mulher divergente, e por isso astuta. Mesmo exigindo condições tresloucadas ao editor que ela parece se apaixonar, sua metamorfose convence muito mais que a solidez de suas duas companhias. Por meio de sua performance corporal, apreendemos uma mudança que é interior – olhos sempre prestes a emocionar-se, postura encabulada é um cabelo quase sempre bagunçado – é o que plasticamente nos faz crer em sua inocência. Porém, sua avidez por uma vida que ainda pode vivenciar uma aventura à encaminha para uma proposta que, em suma, a aprisionaria outra vez: o casamento. Ambas as mulheres caminham em um terreno que prevê a liberdade e uma forma que a sociedade ou as próprias personagens possuem de terminá-la: o que está escrito não é revelado e acaba por deter-se ao poder de silêncio das mulheres – um silêncio que cala ou é calado?
Outras personagens um pouco menos importantes para a trama, mas igualmente construídas sob a égide romântica dos relacionamentos – Emily (Barbara Meier) e Valentina (Morgane Polanski) – são jovens com poucas falas e que parecem marcar presença, infelizmente, somente pela beleza púbere ao comentarem a realização pelo casamento. Com uma dupla mais madura e excêntrica – Mrs. Prest (Lois Robbins), uma espécie de conselheira aparentemente a frente de seu tempo, já que se destaca ao abandonar os vestidos e Colonna (Poppy Delevingne), outra amiga que surge com provocações para a inabilidade jornalística de Morton.
A sequência mais interessante é, com certeza, a acompanhada pela música de Richard Wagner, Tristão e Isolda. Ao embalar a definitiva transformação de Tina, a composição ousada que abre caminho para a atonalidade, consegue exprimir também pelo som, uma aproximação não conclusiva. Afinal, as prerrogativas estipuladas pela narrativa não são, de maneira nenhuma, alcançadas pelo herói e, permanecem igualmente inacabadas pela sobrinha que, ao assumir a vestimenta de luto da tia, consegue erguer-se em uma personalidade complexa, ramificada e que ao mesmo tempo lamenta por aquilo que nunca obteve, mas se contenta ao proporcionar o mesmo vazio ao seu amante platônico.
Ao promover um silêncio que, de alguma forma pertence às personagens femininas, Os Papéis de Aspern apesar de buscar constantemente as cartas escritas por um poeta, deixa transparecer as alternativas possíveis às mulheres não somente enquanto musas de um texto misterioso, mas as condições que as direcionam também como fazedoras de sua própria história. Dessa maneiras, as cartas queimadas por Tina, de alguma forma deixam mais presentes e relevantes a memória de sua tia sobre a sua própria vida, fugindo dos relatos de um homem que, descoberto por outro promove a sua autenticidade literária.
Os Papéis de Aspern acaba por negar o seu próprio título, no filme, as cartas escondidas importam muito menos que a lembrança e a transformação dessas mulheres. A trajetória de um editor que se pensa atraente e tentador é apenas um reforço do quanto a história não está, necessariamente, no desbravamento das ações, mas naquilo que não é dito – ainda que o filme complete com imagens idealizadas algo que funcionaria muito bem na sua ausência.