Não Olhe é um filme que surpreende mais pelas histórias que deixa de contar do que por aquelas que realmente conta. Em uma primeira análise, o argumento é de que a protagonista, Maria (India Eisley) sofre de algum transtorno de personalidade, porém, não são todas as situações que a psicologia consegue explicar e colocar em caixinhas dos traumas familiares.
No auge de seus 18 anos Maria já sofre problemas de relacionamento. Filha de Dan (Jason Isaacs) um cirurgião plástico fissurado pela perfeição do corpo e Amy (Mira Sorvino) uma dona de casa sufocada pelas decisões do marido, a garota tem apenas uma amiga de infância, Lily (Penelope Mitchell). Ao descobrir alguém que pode ajudá-la, Airam (India Eisley) – o inverso de Maria que prossegue a lógica do reflexo no espelho – na verdade, sua irmã gêmea que fora morta pelo pai por ter nascido “defeituosa”.
Apoiado em situações que exacerbam o maniqueísmo e pouco se dão conta da complexidade humana, Não Olhe prevê uma construção de personagens bastante limitadas – a luta melodramática do bem contra o mal ainda prevalece – esquecendo que as pessoas são um grande turbilhão de sentimentos e ações ao mesmo tempo, por isso, o que é ser efetivamente bom?
Com uma família preocupada com as aparências – leia-se sociedade – o tradicional momento de união na mesa do café-da-manhã ou jantar está longe da felicidade de uma família típica dos comerciais de margarina. Tudo é congelado – inclusive o tempo lá fora –, os móveis são demasiadamente angulosos – um ambiente perigoso para qualquer cabeça ou dedinho do pé –, as frutas são sempre tão vermelhas e contrastantes que conseguimos ver de longe a quantidade de agrotóxico depositado ali – uma falsa, porém bela vida saudável.
Dan é a personificação da paranoia com a beleza – leia-se, a sua ideia de belo – especializado em cirurgias plásticas, ele redesenha os corpos como se fossem seus, um criador fora de controle, ele é daqueles que se incomodam com os molhos que escapam da boca enquanto comemos. Já Amy está o tempo inteiro anestesiada, seja pelos medicamentos que seu marido lhe dá ou por conta dos 18 anos que ela não viveu – ainda assim, ela consegue ser a pessoa mais viva da casa.
Não Olhe é sobre uma adolescente em depressão que não consegue ser ela mesma, sobre a dificuldade de diálogo com os pais, sobre o bullying sofrido por ser “diferente” e, claro, sobre o horror de uma irmã morta e desprezada que volta para se vingar. No entanto, talvez o ponto fundamental esteja numa trama de maturação que não acontece e por esse motivo a vida de uma jovem é vivida de acordo com as regras impostas pelos pais – nada de rebeldia!
Airam sai do útero de sua mãe e vai em direção a uma morte fria – um feto jogado no gelo – proporcionada pelo pai que reconhece na filha um corpo defeituoso que ele não é capaz de amar. 18 anos depois ela está de volta. Seja por compaixão a vida mal resolvida da irmã ou como vingança por tê-la tirado de sua mãe, ela usa o corpo da irmã.
O mais chocante não está nas cenas de susto – que são poucas – mas naquilo que passa na cabeça de um pai que acredita que a solução para a vida aparentemente infeliz de sua filha seja uma cirurgia nas orelhas e no nariz. Mesmo que para uma narrativa estadunidense o presente de aniversário tenha fugido do previsto – um carro – em Não Olhe a cirurgia plástica é um presente inusitado, mas ainda assim dá voltas dentro do estereótipo: o carro já não é mais o padrão, o padrão é ter o corpo perfeito.
De maneira direta e muito sutil estabelece-se uma crítica a própria lógica de como os profissionais de medicina são formados: onde ficaram as aulas de ética? Não Olhe não possui força suficiente para lutar contra isso, o filme cai em um caleidoscópio de imagens que comprovam o quando nossa sociedade está doente.
Talvez a personagem mais interessante seja Lily – uma jovem estudante e patinadora talentosa, que namora com Sean (Harrison Gilbertson) um dos garotos do time de hóquei. Lily é uma personagem muito mais humanizada – ela sente raiva quando Maria começa a se dar muito bem com o seu namorado, por isso a leva para patinar e a deixa estatelada no gelo; ela se sente animada ao dirigir sua porsche amarela a caminho da escola e feliz quando Maria consegue sorrir.
Depois do sofrer o trauma do baile, quando arrastada pela pista de gelo por Mark (John C. MacDonald) – leia-se um baile nem um pouco preocupado com aqueles que não possuem a mínima experiência com a performance no gelo – Maria dá lugar a Airam.
A caminho do parque abandonado para patinar, as garotas preconizam uma amizade que está prestes a chegar ao fim. Quando Airam assume, o corpo de Maria aproveita a música jovem como se fosse a primeira vez. Provavelmente a cena mais interessante do filme seja o encontro das amigas no parque abandonado: Maria está aprendendo a patinar e agora já se sai bem melhor, a amiga fica impressionada e a partir daí assistimos a uma competição – Lily executa passos difíceis e Maria, como novata, consegue replica-los mesmo as pernas trêmulas, impressionando a amiga. O último passo é fatal. Maria cai, levanta e é tomada pelo ódio, entre sorrisos nervosos e em grande velocidade ela persegue a amiga. Maria está azulada, seu rosto frio e seu olhar mais afiado que a lâmina dos patins persegue a amiga, Lily é iluminada de forma diferente, mais amarelada, seu corpo rosado possui muito sangue correndo pelas veias – a juventude está prestes a se esvair quando Lily desequilibra e bate a cabeça em um pequeno muito de concreto.
O uso do corpo, seja na metáfora da maternidade, na experiência da masturbação, na primeira relação sexual ou no simples contato entre pai e filha por meio de um beijo, é o maior instrumento narrativo da trama: as pernas jovens parcialmente cobertas por meias 3/4, os seios timidamente de fora, os rostos esticados pelo tempo e os corpos em frente ao espelho que pagarão para serem consertados, apontam para uma liberdade falsa – o corpo aqui ainda é a nossa prisão.
Talvez, o que falte na história dessas personagens jovens é ser jovem, enfrentar os pais, explorar a rebeldia como uma forma de se descobrir no mundo. Maria não desafia seus pais – não grita, não responde, não fala palavrões – vive com lágrimas nos olhos – obedece às ordens de seu pai, até mesmo quando ele exige que ela passe maquiagem para ir à escola. Amy também é carente de um espírito setentista rebelde, não diz nada, só completa com um elogio ao blush capaz de corar a pele pálida da filha. Para a mãe, obter uma vida padrão – leia-se para uma parcela restrita dos jovens americanos – é a solução: o garoto que conhece Maria desde pequena e que se lembra dela, seria o par perfeito para ir ao baile; uma coroa de brilhantes que compõem o vestido de festa a faz parecer um anjo. Lily vive de aparências, mas ainda é consciente das verdades – o assassinato da outra filha, as traições do marido e a possível depressão de Maria – prossegue na impotência exercitada durante toda uma vida, seus momentos de desespero são engolidos, assim como ela faz com os medicamente que seu marido lhe dá.
Em Não Olhe o sexo possui uma abordagem curiosa, ao se masturbar em um banheiro envolto pela fumaça, Maria descobre o prazer que seu corpo pode proporcionar, todavia, tal experiência que poderia ser tratada como algo absolutamente normal para uma jovem da sua idade, transforma-se no estopim para que ali sua irmã- má seja despertada. Esse tratamento ultrapassado do corpo ainda se apoia numa lógica que prevê castigos ou punições – por meio da lógica física toda ação causa uma reação, conhecer o seu próprio corpo torna-se o primeiro passo para uma vida perturbada.
O corpo proibido, uma herança que poderia dispensar do final do século XIX ainda perdura por narrativas que à primeira vista parecem libertar. O sexo dos adolescentes, mesmo depois da morte da amiga prossegue sendo tratado como um caminho rápido e efetivo para a vingança – os jovens sedentos e o garoto que confirma de maneira pífia que a “carne masculina” é fraca diante da mulher, reafirmam timidamente um discurso que entrega a mulher a culpa por todos os males.
No meio da aula de história, a forma didática que o filme encontra para explicar o que de fato acontece com Maria e Airam – os irmãos Caim e Abel – é interrompida por um bilhete de Maria do qual ela passa entre as pernas e entrega ao garoto – “me cheire” – ela provoca – um aroma mortal que resulta na morte de um jovem que pouco antes de ser atingido por uma garrafa de bebida, começa a proferir um discurso em sua defesa afirmando que irá ajudar os policiais a compreender a morte de sua ex-namorada.
Desesperada, Airam vai ao encontrou de seu pai, chega ao consultório falsamente embriagada e lá tira toda a sua roupa, é quando pergunta: se eu fosse deformada ainda me amaria? O pai reluta e dá uma resposta tão falsa quanto o porre da filha e agora por meio do principal instrumento de trabalho de seu pai – o bisturi – Airam lhe corta a garganta. No retorno para casa seus pés sentem o frio da neve, ela vai diretamente ao encontro de sua mãe que, finalmente terá as duas filhas em seus braços.
Não Olhe termina da mesma forma que inicia: com a maternidade. Um jogo de câmera que se assemelha ao espelho nos diz que de alguma forma, mãe e filhas agora estão juntas – o som que ouvimos enquanto as imagens trocam e as filhas vão aparecendo uma de cada vez em cada braço, lembro o som da troca das transparências – um tipo de reserva das memórias em família – Não Olhe está longe de apresentar personagens autenticamente livres, o cordão umbilical ainda não está preparado para ser cortado e tanto os pais, como os filhos sofrem as consequências dessa dependência.
Com cenas muito bem construídas dentro do banheiro, Não Olhe cria um ambiente sufocante, o vapor da água quente impregna no espelho e a respiração ofegante resultado de uma masturbação intensa, só intensifica o quão Maria se afoga em suas preocupações – sua irmã aparece no ápice do seu prazer – aqui relembramos o castigo sofrido por ela tentar ser simplesmente aquilo que é da sua vontade.